sábado, 30 de abril de 2011

A heroina Idealizada de José de Alencar: Iracema

Iracema é filha de Araquém, pajé da tribo tabajara, e deve manter-se virgem porque “guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã”. Um dia, Iracema encontra, na floresta, Martim, que se perdera de Poti, amigo e guerreiro pitiguara com quem havia saído para caçar e agora andava errante pelo território dos inimigos tabajaras. Iracema leva Martim para a cabana de Araquém, que abriga o estrangeiro: para os indígenas, o hóspede é sagrado.
    O momento em que Martim encontra Iracema revela a idealização romântica em seu grau mais elevado:
 
    “Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
    O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
    Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
    Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.
    Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste
    A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá , as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.
    Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
    Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.”
 
    Note-se que o narrador seguidas vezes compara Iracema à natureza exuberante do Brasil. E a virgem leva sempre vantagem. Seus cabelos são mais negros e mais longos, seu sorriso mais doce, seu hálito mais perfumado, seus pés mais rápidos.
    Iracema é apresentada por um narrador que, embora se apresente na terceira pessoa, é claramente emotivo e apaixonado. Retrata-a, portanto, como a síntese perfeita das maravilhas da natureza cearense, brasileira e americana. Iracema é muito mais do que uma mulher. Não anda, flutua. Toda a natureza rende-lhe homenagem: da acácia silvestre aos pássaros, como o sabiá e a ará. A heroína é o próprio espírito harmonioso da floresta virgem.
 

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